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Famílias diversas reforçam laços contra preconceito

Julianna Motter
juliannamotter@gmail.com

Em uma sociedade que parecia caminhar para maiores conquistas nos direitos que dizem respeito às minorias, enfrenta o Congresso mais conservador e retrógrado desde 1964, existem pessoas capazes e dispostas a bater o peito e afirmar: “Intolerantes não passarão”. Em meio ao fervor de gritos que pedem a volta de uma ditadura militar, e gritos que pedem, com alegria e positividade, pelo direito de amar sem gênero, o Jornal Esquina encontrou algumas histórias que comprovam que o mundo é bem mais bonito quando os armários podem ser substituídos por sorrisos desbundados e cheios de cor.


 "Da mesma forma que esperamos respeito em nossas decisões, precisamos respeitar o direito de escolha do outro, independente de nossas opiniões", afirma a estudante Marcela, de 17 anos que, recentemente, assistiu o pai Fernando sair do armário aos 40 anos de idade.

Tanto Marcela, quanto a irmã, Thaís de 14 anos, encararam com naturalidade a notícia. "Para mim foi super normal, sempre soube, acho que via nos olhos dele o peso que era conviver com o segredo", conta a estudante que, por respeito ao pai, preferiu esperar que ele as procurasse, "eu tinha vontade de chegar e falar que eu estava com ele para o que desse e viesse", diz.

"Nossa relação melhorou muito dentro de casa, e acho que ele está melhor consigo mesmo", conta Marcela que reforça o medo da intolerância e do preconceito, mas que admite temer mais por seu pai do que pelo que possa vir a sofrer de comentários maliciosos ou brincadeiras. "Acima de tudo, quero a felicidade dele", afirma.

Inicialmente, ela ficou com medo do que teria que enfrentar por conta da sexualidade do pai, depois percebeu que esse medo só contribuiria para a disseminação de preconceito "É meu pai, sempre vai ser, nada mudou", acrescenta Marcela.

Fernando conta que, desde a infância, percebia o interesse por pessoas do mesmo sexo, mas por conta da criação - extremamente religiosa -, acreditava ser um pecado, "orava todo dia para aqueles desejos saírem da minha cabeça", conta.

Quando conheceu a mãe de suas filhas, achou que a atração por homens passaria "Eu realmente me apaixonei por ela", diz. Os dois ficaram casados por alguns anos, tiveram as duas filhas, mas Fernando continuou "precisando orar para parar de pensar naquilo". Há 11 anos atrás, ele ficou viúvo, decidiu se mudar com as crianças para Brasília e recomeçar a vida.

A primeira experiência homossexual foi em 2011, mas A decisão de sair do armário só aconteceu recentemente por conta de um complicado um processo de auto aceitação "parei de me achar uma abominação", dispara. Quando decidiu contar para todo a família, acabou se surpreendendo. "Sabe quando você acha que vai levar pedrada, mas acontece o oposto?”.

A preocupação com a reação das filhas e da mãe eram as maiores, “achava que minha mãe teria um enfarto", desabafa. "Hoje, me sinto mais transparente", diz. "Sendo pai e gay assumido ao mesmo tempo, me sinto mais aberto para o diálogo com com minhas filhas, e mais maduro".

AS DIFERENTES CONSTITUIÇÕES FAMILIARES

O casal Maria e Gabriela reforça a importância da escola no combate à discriminação não só dentro do espaço acadêmico, mas como uma medida universal, “na proporção em que a escola respeita a situação de cada aluno, ela naturaliza qualquer diferença. Porque o mundo é isto: mais de sete bilhões de diferenças".

Juntas há 16 anos, elas conseguiram, depois de dois anos de processo, concluir os trâmites que permitiram a conquista da guarda de duas crianças, os meninos José e João, na época com 8 e 3 anos. Hoje, o processo de adoção ainda está em curso no âmbito judiciário, mas os quatro vivem em um lar onde se é, diariamente, ensinado o "respeito mútuo".

As duas afirmam ter recebido apoio integral das famílias de ambas quando decidiram adotar, "eles foram os primeiros a nos apoiar. Desde muito cedo acolheram inteiramente as crianças", contam.

As crianças, que estudam em escola católica e praticam diversas atividades extraclasse, nunca relataram ter sofrido uma situação de preconceito ou exclusão,  "eles sabem que são muito amados e que esse sentimento não depende de qualquer outro fator", dizem. “Sempre fomos claros em relação à nossa situação familiar. E nossa naturalidade, de certa forma, fez com que as pessoas naturalizassem também", afirmam.

José fez acompanhamento psicológico quando ainda era mais novo, mas foi liberado pela psicóloga depois de alguns meses. O tratamento, no entanto, não foi motivado pela nova conformação familiar, mas pela história do abandono que sofreram dos pais heterossexuais.

APOIO LEGAL

A advogada Karoline Bussolo explica que a falta de instrumentos legais para garantir a segurança dos LGBTs e a inexistência de uma lei que criminalize a homofobia são algumas das falhas do Estado que acabam refletindo em um aumento das situações de violência e crimes de motivações homofóbicas.

Por parte da adoção por casais homoafetivos, a advogada reforça que "não existem impedimentos legais". No entanto, existe um processo rigoroso por parte das autoridades competentes pela parte de adoção por parte de casais homoafetivos, "alguns ainda insistem em repensar esse tipo de adoção", explica Bussolo.

Ela reforça que, no Estatuto da Criança e Adolescente (Subseção VI - Da adoção - artigo 43), consta que: "A adoção poderá ser deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos".

"Acredito que se os adotantes podem oferecer um lar seguro, um ambiente de criação tranquilo e amoroso deveria ser o suficiente", completa a advogada que reforça que a orientação sexual não deveria interferir nesse tipo de processo "Há na família um valor instrumental e as aspirações afetivas e sentimentais de casa indivíduo, não cabe ao Estado interferir na busca particular de cada um por sua felicidade", afirma.

ESCOLA SEM HOMOFOBIA

Guilhermina Cunha, vice-presidente da ABLGBT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), explica a criação do projeto Escola Sem Homofobia.

A iniciativa é feita em parceria com instituições não governamentais, estados e municípios, que reúne grupos de gestores interessados e gestores de ONGs envolvidos na prevenção e no combate de violência contra LGBTs. "O propósito é facilitar a discussão acerca da homofobia, lesbofobia e transfobia nas escolas públicas dos níveis fundamental e médio, visando a definição de recomendações para promoção do reconhecimento da diversidade sexual e enfrentamento da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero na educação escolar", explica Cunha.

A CORAGEM, A VONTADE E O PRECONCEITO

Nem as dificuldades em “sair do armário” para a família, ou os olhares preconceituosos de que não sabe lidar com a diferença devem impedir a coragem de enfrentar os desafios impostos diariamente pela homofobia. É o caso da universitária Mayara Dias, “já sofri mais preconceito, por volta dos 13 ou 14 nos. Mas nem isso me fez achar que o que eu vivia era algo errado”, conta.
Mayara precisou enfrentar algumas dificuldades que não esperava, e que lhe trouxeram um pouco de desamparo, “pela minha idade, achavam que era só uma fase e me julgavam por isso ao invés de ficarem do meu lado naquele período”, conta.

“Hoje, sou assumida, meus pais me apoiam. Não tenho qualquer medo de que os outros saibam. Estudo, trabalho, pago minhas contas e sou muito feliz no meu relacionamento”, explica.
Mayara, há cerca de dois anos, mora junto com sua namorada, Júlia Abreu, de 26 anos.“Encontrei uma pessoa que enfrenta as situações cotidianas do meu lado, segurando minha mão. E se essa pessoa é uma mulher, quem irá me dizer que está errado?”, completa. Júlia passou pelos mesmos desafios, mas também chegou à compreensão.

As duas nunca enfrentaram dificuldades de convívio nos ambientes familiares uma da outra. O casal convive com os sobrinhos de Júlia e os irmãos de Mayara – todas as crianças com menos de 12 anos – e recebem, frequentemente, lições sobre aceitação e tolerância. “Todos nos tratam muito bem, entendem a relação, com aquele coração acolhedor infantil”, explicam, “se uma de nós não aparece no final de semana, elas logo perguntam o motivo da ausência”.
“O que eu vejo hoje, é que as pessoas parecem estar perdendo suas almas para um ódio injustificável”, ressalta Júlia que, mesmo assim, não se deixa intimidar, “o que teremos que fazer, com medo ou não, é enfrentar as dificuldades e fazer o melhor que podemos”.

MUDANÇAS QUE NÃO MUDAM MUITA COISA
A universitária Jéssica, nasceu em Santa Catarina, morou com o pai e a mãe até os 5 anos de idade, quando os dois se separaram. “Não tenho uma memória muito boa para lembrar dos dois casados. Eu só sei da minha mãe separada do meu pai”, conta. Quando o casamento dos dois acabou, a mãe da estudante passou a se relacionar com mulheres, “já conheci duas parceiras dela e isso para mim virou natural”, relembra.

Marina relembra que chegou a morar junto com sua mãe e uma parceira em Florianópolis: “Morávamos juntas, mas ela nunca tinha me dito que eram um casal”. Depois de uns anos morando em cidades diferentes é que a revelação veio, “ela me apresentou a nova parceira dela, disse que estavam em um relacionamento sério. Eu disse que já sabia, claro, e que aceitava super bem”. A estudante reforça que sempre achou natural, pois já sabia há muito tempo, mesmo sua mãe tendo levado mais de 10 anos para admitir.

Em contrapartida, sua irmã não teve a mesma facilidade em aceitar: “Ela não lidou muito bem, ainda é meio travada em relação a isso, até porque a relação dela com a nossa mãe não é tão boa quanto a minha”, explica.
Há alguns anos, Marina mora com sua mãe, a parceira e os dois filhos dela: “Eu me dou muito bem com todos. Somos uma família muito unida”, afirma. Para reforçar a maneira como a constituição diversa não afeta negativamente em suas relações, Marina ainda ressalta, “me dou melhor, aliás, com os filhos da parceira da minha mãe do que com minha própria irmã e quer saber, acho até melhor ter uma madrasta do que ter um padrasto”, diz, aos risos.
Por ter optado em sempre circular em ambientes muito abertos e plurais, a universitária conta nunca ter sofrido algum tipo de preconceito, nos momentos em que enfrentou algum comentário homofóbico ou machista, tentou, pacificicamente, “livrar as pessoas do pensamento arcaico”, ainda que nem sempre com sucesso.

“Muita gente sabe que minha mãe é gay”, mas Marina prefere não sair por aí contando, por ser algo natural, ela espera que as pessoas encarem naturalmente “Quando alguém vai lá em casa, percebe que, além da minha mãe, existe também a parceira dela”.

*Para manter a privacidade dos entrevistados, todos os nomes foram alterados.