Em tempos nos quais
debates sobre questões sociais são despertados em hashtags nas redes sociais,
relembrar importantes agentes da cultura brasileira se faz necessário
A discussão gerada após o recente caso do jogador Daniel Alves, com
o movimento de redes sociais #SomosTodosMacacos ascendeu uma indignação não contra
o foco da manifestação, mas contra os “manifestantes”. Como ocorrido com os
últimos movimentos online, o que poderia ter se tornado um debate proveitoso,
caiu na banalização e no desejo exacerbado e ególatra do usuário em se mostrar
politizado para seu próprio ciclo social. Exalou preconceito disfarçado de
engajamento social.
São
discursos que suprimem o real valor da mistura de raças que construiu a
identidade cultural do país. Curiosamente, as verdadeiras pessoas que lutam
diariamente contra o preconceito que sofrem e as diversas consequências que
isso imprime em suas vidas, não repercutiram esses movimentos. É o caso da luta
individual em um país que forja a imagem de igualdade e harmonia entre sua
população “festeira e eternamente alegre”.
Um
desses personagens surgidos em guetos que conquistaram seu espaço com o suor do
próprio trabalho se encontra na Bahia. De família pobre, vinda do subúrbio de
Salvador, mulher e negra, foi vendendo marmitas enquanto trabalhava em casa de
família que encontrou o próprio dom para ganhar a vida. Seu nome: Aldaci dos
Santos. A Dadá da Bahia.
Simpatia, sabores e identidade
Dadá em sua última vinda a Brasília, no evento CasaPark Gourmet, em 2013. Foto: Alan Santos/ Divulgação |
Em artigo sobre identidades culturais (leia aqui), o escritor Osvaldo Orico definiu culinária como sendo um “misto de etnologia, história, sociologia, folclore, pesquisa social, cruzamento de caminhos na perseguição de um fim”. Ou seja, a define como cultura. E foi apostando nas habilidades com os temperos que Dadá se construiu como uma referência em sabor no Brasil. O significado que carrega em seu sorriso largo, de mulher baiana e batalhadora, atravessa as barreiras impostas e unifica gostos e comportamentos em valorização à própria história de vida.
“Todo dia eu digo: não é só o tempero. É a Dadá em si. Eu
acho que o grande feitiço da comida da Dadá é a Dadá. O povo vai em Dadá pra me
ver. Quando eu estou lá, às vezes eu nem entro na cozinha, mas eles dizem que a
comida está transformada”, declara. Com 50 anos e metade disso dedicados
ao trabalho, conforme diz em entrevista ao programa Memória da Bahia, do grupo
A Tarde, a baiana traz em si a base sólida da cultura negra que é parte
importante e fundamental da identidade cultural brasileira.
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Você não tem noção do quanto isso mexe comigo. Eu pedi a Deus para crescer de
tamanho. Cresci de tamanho, de nível, de história de vida... Eu cresci de tudo!
Então pra mim é um sonho. Sempre é um sonho que eu digo que nunca acaba. [...] Eu
ando em todo lugar do mundo, mas quando chego do avião e abre a porta, eu vejo
aquela escada, é como se eu estivesse fazendo uma limpeza de corpo. Aquele
vento, aquela brisa… É como se eu fosse sacudida de axé, de luz. A Bahia pra
mim é um lugar iluminado.
Os
dois restaurantes (Sorriso e Tempero da Dadá, amos em Salvador) e a carreira consolidada não mudaram os hábitos da
quituteira. “Continuo cozinhando, indo à feira de São Joaquim, carregando saco
de peixe no corpo. A mesma coisa. Eu não mudei nada! Continuo a mesma Dadá de
30 anos atrás. Coloco o saco na cabeça, não tenho vergonha. Se tiver que lavar
um vaso sanitário, eu lavo. E eu quero morrer assim”, dispara.
Foto: Alan Santos/ Divulgação |
Assim
é Dadá, uma importante expoente da cultura brasileira baseada na história negra
do país. Veio de baixo, do gueto. Precisou lutar pela própria vida e contra
todos os empecilhos que essa a impôs por ter vindo ao mundo em um país racista e
historicamente segregado. Assim como os personagens do esporte, da dança e da
literatura, é uma personalidade que deve ser sempre lembrada e reconhecida. E é
com uma gargalhada contagiante que a mais famosa cozinheira baiana resume a si
e a mulher entoada nos versos de Dorival Caymmi com um plurissignificado sutil sempre
presente em suas palavras: “A baiana tem tempero, amor, sorriso e remelexo no
corpo”.
Por Pedro Lins