Fora da competição, atletas de lutas marciais combatem métodos radicais e sofridos para alcançarem a perda de peso
Foto: Felipe Fontinele/Arquivo Pessoal |
Em 2013, o brasileiro Leandro Feijão morreu no dia da pesagem do Shooto 43, evento de MMA (artes marciais mistas, em inglês) em que lutaria, no Rio de Janeiro. Ele tinha 28 anos e dez lutas disputadas na modalidade, com cinco vitórias, e foi vítima de um acidente vascular cerebral (AVC), como apontou o atestado de óbito. Segundo a fisiologia cardíaca, a desidratação, geralmente feita para a perda de peso dos lutadores, pode ser uma das causas de AVC, pois altera a pressão arterial e pode causar um aneurisma.
Yang Jian Bing, peso-mosca chinês de 21 anos, era lutador do ONE FC, evento asiático de MMA. O jovem foi vítima de falência cardiopulmonar e morreu no final do ano passado. Ele passou mal após ter problemas com o corte de peso para o "ONE Championship", que disputaria naquela semana. Chegou a ser internado, mas sofreu um colapso logo antes da competição. O contexto específico da morte não foi anunciado.
Yang Jian Bing, peso-mosca chinês de 21 anos, era lutador do ONE FC, evento asiático de MMA. O jovem foi vítima de falência cardiopulmonar e morreu no final do ano passado. Ele passou mal após ter problemas com o corte de peso para o "ONE Championship", que disputaria naquela semana. Chegou a ser internado, mas sofreu um colapso logo antes da competição. O contexto específico da morte não foi anunciado.
As perdas bruscas de peso não são recomendadas por profissionais da saúde, segundo Victor Hugo Machado, nutricionista esportivo e triatleta. Ele explica que esses métodos utilizados pelos lutadores não levam à perda de massa, mas sim de água. "O máximo que vi próximo a mim, foi um atleta que perdeu 14 quilos no mesmo dia. Ele acordou de manhã, e treinou empacotado com saco plástico para suar mais."
Daniel Dionísio, 35 anos, é lutador de Boxe Chinês, prestes a se aposentar. Vencedor de três mundiais, cinco sulamericanos, quatro brasileiros e às vésperas da última competição, o atleta se prepara para a Copa Americana, em agosto deste ano. “A preparação para uma luta é de aproximadamente três meses antes da competição. A minha é em agosto e, até lá, preciso perder 10 quilos”.
Nesses três meses, a alimentação do atleta passa a ser mais regrada. Evitar carboidratos, comer muita salada e frango é comum na rotina. “Não mantenho a dieta sempre. O meu foco é quando já tem uma luta marcada. Volto para a dieta para chegar no peso exigido na categoria que vou lutar”.
A última semana é ainda mais crítica. Para evitar retenção de líquido, o atleta corta o sal da alimentação. “Quando chego mais próximo da luta, é difícil perder muito mais peso do que já perdemos”, afirma. “Como um dia antes da luta precisamos perder peso desidratando, não podemos ter sódio no corpo para evitar a retenção”. Daniel conta que, entre 17h e 21h, consegue reduzir até sete quilos na balança. “Quando chega um dia antes da luta e ainda não consegui bater o peso, começo a perder o que falta em água. Tenho colegas que conseguem perder até 15 quilos apenas desidratando para a pesagem”.
Foto: Arquivo Pessoal |
Um dia antes da competição, Daniel usa blusa e calça térmica de plástico para treinar. Durante uma hora, alterna três minutos de exercícios intensos e três minutos de descanso com a roupa e um edredom para manter o calor do corpo. “Logo no começo já começamos a sentir o suor escorrendo. É muito fácil perder água assim”.
Após os exercícios, descansa durante uma hora e depois repete o procedimento mais uma vez. “Tem horas que a gente até vê estrela de tão fraco que estamos. Não podemos comer e nem beber água até a pesagem. Às vezes, até chupamos gelo para enganar o corpo e não desmaiar”.
Daniel relata que nem sempre é possível cravar o peso certo na balança. Caso isso aconteça na pesagem oficial, o atleta tem até uma hora para perder o peso necessário para ser enquadrado na categoria. “Neste momento também é fácil. Normalmente, falta menos de 500 gramas. Então podemos fazer alguns exercícios com a roupa térmica ou até mesmo marcar chiclete para produzir saliva e cuspir. Normalmente, em 15 minutos dá pra perder o que falta”, relata.
Após a pesagem, a reidratação deve ser feita com a supervisão de algum profissional. Primeiro, o atleta ingere o soro fisiológico via oral ou na veia. “Nessas competições, normalmente há uma enfermeira que faz esse tipo de coisa. Ela coloca o soro na nossa veia para reidratarmos”, relata. Depois do soro comum, o atleta toma outro soro, o pedialyte (utilizado na reidratação de crianças). “Depois disso, nos sentimos muito melhor na hora. Nós reidratamos e corremos para conseguir ganhar o peso novamente (antes da luta)."
Mesmo com todo o estresse sofrido pelo corpo, Daniel diz que ainda vale a pena. “Ganhar uma competição é algo muito gratificante. Esse é o preço que pagamos por levar o esporte a sério”.
Sacrifício
Ricardo Saldanha, 25 anos, começou a participar de competições há sete. Tem quatro anos que foi convocado para a Seleção Brasileira de Boxe Chinês. Entre os títulos conquistados nesse tempo estão os de campeonatos brasileiro, sul-americano, quatro títulos do brasiliense e, agora, está em busca da conquista panamericano.
Aproximadamente dois meses antes de uma competição, a preparação para se enquadrar no peso da categoria que quer lutar. “O meu peso normal é de, pelo menos, 90 quilos. Mesmo assim, tento lutar na categoria de até 84 quilos, então tenho que me esforçar para chegar no peso”.
Foto: Felipe Fontinele/Arquivo Pessoal |
A dieta de Ricardo começa com o corte de carboidratos. Ele afirma comer muitas verduras e legumes e beber bastante água. Apenas com essas mudanças, ele explica que já consegue perder cerca de quatro quilos. “Isso é para o Boxe Chinês, que tem pesagem antes de toda luta. Em um mês já consigo bater o peso”.
Dedicado também ao MMA, competição cuja redução de peso é diferente, Ricardo 14 quilos, ao invés do 4 quilos do Boxe Chinês. "Eu nunca senti o baque da desidratação porque eu tenho medo de perder muita água", confessa. Ricardo diz que a dieta é ruim no começo, porque fica mal humorado, mas que o corpo acostuma. Já com a sede, é "quase insuportável" lidar.
Com 24 horas para ganhar o peso antes da luta, as práticas são completamente diferentes da dieta: muita água e muita comida. No dia da luta é consumido muito carboidrato simples, de rápida absorção, como macarrão, arroz branco ou batata. "Depois da desidratação, após uma duas horas já está tranquilo para comer à vontade. Eu recupero até seis quilos, mas já vi gente recuperando 10."
O atleta explica que sente fraqueza depois da desidratação.. Por isso, os treinadores pedem para ele entrar em contato quando sentir vontade de comer. "Às vezes dá vontade de largar tudo e comer. Eu penso: 'para quê eu vou fazer isso se fico morrendo de fome, quase desmaiando?”. Ricardo sofre com a ansiedade pela cobrança antes das competições. "Quando eu tenho algum problema, desconto na comida. Já pensei em fazer acompanhamento psicológico."
Risco
Foto: Daniela Magalhães/Arquivo Pessoal |
Para Márcio Oliveira, fisioterapeuta especialista na área esportiva, a desidratação brusca é um processo drástico e perigoso. "De forma alguma é um procedimento recomendável, a não ser que por um profissional irresponsável." Para ser segura, a desidratação tem um limite muito estreito de 2% ou 3% do peso corporal, segundo ele, mas os atletas perdem muito mais que isso.
Quando o lutador chega na semana da competição e começar a desidratar, algumas sequelas aparecem - como das diminuições de função motora, dos reflexos, da força e da potência. "Por isso, muito atletas se lesionam nos dias que antecedem a competição, mesmo sem fazer treinos pesados", explica Márcio. Como eles estão debilitados do ponto de vista motor, em decorrência das perdas da desidratação, ficam mais suscetíveis a lesões. "O processo é todo muito maléfico."
Márcio explica que a falta de água compromete muito mais do que só o peso. "No corpo existe uma hemodinâmica (regulação da circulação sanguínea) e quando se perde muito líquido, o volume de sangue que chega ao coração para ser bombeado fica comprometido, como explica a fisiologia cardíaca." Esta é uma das razões que podem levar o atleta ao óbito, porque pode até faltar irrigação sanguínea ao cérebro.
Cultura enraizada
Marcus Barros Melo, médico ortopedista traumatologista e especialista em medicina do esporte, aponta que essa perda de líquido pode afetar drasticamente os rins, o fígado e até a questão do desempenho dos atletas na luta. "Os eletrólitos são micro-nutrientes que são essenciais para a contratura muscular e cognição, que são perdidos com a desidratação", segundo ele. Assim, os lutadores podem chegar à insuficiência renal aguda, que pode até matar o atleta.
"É muito difícil tirar essa cultura dos atletas. Isso é algo enraizado há muitas décadas pelo pessoal do boxe e acabou sendo inserido no mundo do MMA, quando as diversas artes marciais migraram para a nova modalidade", critica Marcus, em relação a desidratação severa.
Após a pesagem, os atletas querem ganhar peso a qualquer custo para ficarem fortes para lutar. "O que eles não sabem é que não ficam mais fortes. Na verdade, ficam mais fracos, porque de forma brusca não é possível repor tudo o que foi perdido, como eles imaginam." Deste modo, o corpo fica muito comprometimento para a luta.
Para ele, no fim das contas, a prática da perda de peso não faz diferença na estratégia. Todos perdem peso para lutar em categoria inferior e depois ganham para a luta. Na competição, acabam lutando com oponentes de mesma categoria, não importando e perda. "Então todos estragam o organismo para lutar deteriorado com um oponente do mesmo peso. Seria melhor simplesmente continuar na mesma."
Opções
Goma de mascar, roupas especiais para aumentar a temperatura corporal e sauna são exemplos de métodos extremos. Há uma tática ainda mais ousada: banho de banheira de água quente com sal para desidratar ao máximo. As opções de práticas são diversas, mas tem com em comum: não nocivas à saúde se feitas sem limites.
O que poucos sabem é que existem formas de fazer uma perda controlada. Segundo o nutricionista Victor Hugo Machado, o método "pirâmide" pode ser eficaz, se feito com acompanhamento de uma equipe multidisciplinar. A perda brusca não é bem reconhecida pelo organismo, mas aos poucos pode ser segura.
Por esta razão o método pirâmide não é feito a longo prazo e com consumo gradual. Dias antes da competição, a ingestão de água e alimentos aumenta gradualmente, até um pico determinado pelo profissional que acompanha o atleta. Ao chegar nesse nível máximo, inicia-se uma redução progressiva, para que o organismo lide melhor com a perda. Para o nutricionista, "esta seria uma desidratação controlada".
A discussão sobre os métodos de perda de peso do atletas de MMA e após a morte de Yang, citado no início desta matéria, ganhou mais importância. No final e 2015, o ONE FC, grande torneio asiático da modalidade, anunciou mudanças nas regras da competição. Com o objetivo de banir a desidratação arriscada e garantir que os atletas lutem com o peso normal, as novas regras passaram a valer em janeiro deste ano. A organização, desde então, afirma acompanhar o peso dos lutadores diariamente, através de um portal online. Durante a semana de luta, os pesos são verificadas diariamente. A densidade urinária também será verificada logo após a chegada e três horas antes do evento. Os atletas deverão estar dentro da respectiva classe de peso e passar por testes específicos de hidratação por toda a semana e até três horas antes do evento. Os médicos ainda podem solicitar testes adicionais a seu critério e a utilização de soro está proibida. Detalhes e outras normas estão disponíveis no campo Weight Classes do site www.onefc.com. Se, por acaso, o atleta não cumprir alguma das regras, é desqualificado do evento.
Já o UFC (Ultimate Fighting Championship Brasil), divulgou mudanças no final de maio deste ano. Segundo eles, a partir de julho de 2016, no UFC 200, a novas orientações estarão valendo. A instituição afirma ser uma nova “diretriz” e não uma “regra”, cuja instrução é que os lutadores não percam mais do que 8% do peso limite da respectiva categoria na semana da luta. Segundo o UFC, esse valor foi determinado por especialistas que afirmaram ser uma quantidade segura. Ainda não está prevista punição para atletas que não seguirem as orientações. No entanto, a organização afirmou que vai analisar qual vai ser o efeito das novas instruções para, então, decidir se será necessária uma medida mais drástica. Mais detalhes podem ser encontrados no site www.ufc.com.br.
Por Ana Luiza Campos e Isabella Alvim