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Preconceito no topo: mercado de trabalho de pessoas com deficiência é defasado



Empresas não se adaptaram ao avanço das leis

Roger tem paralisia cerebral e sofreu preconceitos para se estabelecer no mercado.
Foto: Mariana Areias

Às 9h da manhã, a loja de roupas está prestes a abrir. O dia de trabalho vai começar. No bolso, bloquinho de papel e caneta já estão reservados para facilitar a comunicação, pois ninguém na empresa entende Libras (língua brasileira de sinais). A mímica é outra alternativa, apesar de não ser a mais adequada. Organizar roupas e calçados do departamento feminino da loja exige pouca interação e é neste setor que o deficiente auditivo Carlos Augusto Ferreira, 42, está alocado. Histórias como a dele ilustram um problema típico do acesso ao mercado de trabalho por pessoas com deficiência: as leis evoluíram, mas as empresas e mesmo instituições públicas não se prepararam para recebê-los.
Visto pelos companheiros de trabalho como um colega dedicado e cheio de personalidade, Carlos é funcionário de uma loja de departamento há cinco anos, mas a luta por espaço no mercado de trabalho começou aos 32. O primeiro emprego foi em um órgão Federal, onde era responsável pelos serviços gerais. 

“Eu fui demitido e nunca soube o porquê. Não havia comunicação eficiente entre chefes e pessoas com deficiência. Essas situações me fizeram entender o que era o preconceito no ambiente de trabalho” (Carlos Augusto)

Apesar de enfrentar dificuldades para obter qualificação e melhores condições de trabalho, Carlos está no 2° semestre do curso Gestão de Recursos Humanos, motivado pela família e pela luta contra o preconceito. Na sala de aula, ele se comunica com os colegas e professores através de alguém que, há dez anos, se dedica a tornar o mundo dos deficientes auditivos possível. Michel Platini, 33, é intérprete de libras e considera que o trabalho é a porta de entrada dos surdos para o mundo. “Amo o que faço e sou feliz em poder ajudar eles a se formarem nos cursos universitários. Eu não paro de estudar e pretendo me aperfeiçoar ainda mais”, pontua.

Créditos: Mariana Areias
Carlos Augusto é deficiente auditivo e trabalha em uma loja de departamentos, em Brasília

Mesmo dentro de casa, a comunicação de Carlos com a família é limitada, pois ninguém sabe Libras. “Para os surdos a vida é muito difícil, mas eu sou feliz e estou sempre lutando para conseguir o meu espaço”, diz. Ele já foi presidente do grupo de surdos LGBTs e sempre insistiu nas lutas deste segmento. “Tento ajudar os amigos que enfrentam dificuldades por conta de preconceitos ou falta de estrutura”, afirma.

Mercado de trabalho

A Lei Federal nº 8.213/91 foi criada para garantir às pessoas com deficiência (PCDs) a possibilidade de exercerem alguma atividade laboral. Conhecida como Lei de Cotas, a exigência da legislação é que empresas com mais de 100 funcionários reservem de 2% a 5% das vagas do quadro de efetivos para deficientes.

De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em 2013, havia 813.235 vagas para pessoas com deficiência em empresas obrigadas a contratar. Porém, 37,58% estavam ocupadas. No total, eram 305.623 deficientes no mercado. Em 2014, o percentual subiu para 39,53%, o potencial era de 827.841 vagas. Deste total, 327.215 estavam preenchidas.   

                        
Fonte: Ministério do Trabalho


O advogado Cláudio Sampaio, ex-vice-presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência na OAB/DF, considera que empresários têm que cumprir a lei e deixar de lado os preconceitos. Ele ressalta a escassez de políticas públicas voltadas para capacitação dessas pessoas. “O Estado é o responsável pela devida qualificação das pessoas com deficiência. O que vemos atualmente são entidades exercendo, com dificuldade de recursos, um papel que era para ser do Governo. A legislação é muito bonita, muito vasta, mas, na prática, pouca coisa é feita para qualificar deficientes”, considera.

Em 2015, o número de empregos para as PCDs cresceu 5,75% em relação ao ano de 2014, segundo o MTE.  Sueidi Miranda Leite, diretor-presidente do Instituto Cultural, Educacional e Profissionalizante de Pessoas com Deficiência do Brasil (Icep-Brasil), acredita que o resultado da pesquisa é duvidoso, já que, no ano passado, o país enfrentou profunda recessão, com desemprego alcançando 8,5%, a maior taxa em três anos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “O instituto trabalha com empregabilidade de pessoas com deficiência desde 2000 e acompanha sistematicamente os resultados. Mas, este número não condiz com a realidade”, afirma. Para ele, o Estado precisa investir fortemente em qualificação de PCDs.



Para Fernanda Maria Pessoa, auditora Fiscal do Trabalho e Responsável Nacional pelo Projeto de Inserção de Pessoas com Deficiência no Mercado de Trabalho, os números de PCDs no mercado de trabalho aumentaram devido ao eficiente trabalho de supervisão. “Se não houver fiscalização, não há contratação. Em 2014, cerca de 40% das vagas reservadas às pessoas com deficiência estavam ocupadas. Como o mercado de trabalho não encolheu, havia margem para a contratação de mais pessoas com deficiência. Além disso, intensificamos a fiscalização das demissões das PCDs e do cumprimento das cotas legais”, pontua. Ela reforça que uma empresa não pode demitir uma pessoa com deficiência sem a contratação de outra para substituir de imediato.

Remuneração

A Constituição Federal prevê no artigo 7, inciso 31, que “é proibida qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”. Porém, segundo dados do Ministério do Trabalho, os PCDs ganham 6% a menos do que as pessoas sem deficiência. Sueidi, do Icep Brasil, explica que, de modo geral, a pessoa com deficiência costuma ganhar um salário igual ou pouco maior do que um salário mínimo (R$ 880), o que dificulta o cidadão a abandonar o Benefício de Prestação Continuada (BPC) - salário mínimo pago por mês, pelo governo, para deficientes com maiores dificuldades de trabalhar. “Se a pessoa com deficiência recebe um salário mínimo sem trabalhar, por que ela enfrentaria falta de acessibilidade e dificuldades de locomoção, por exemplo, para ganhar o mesmo que ganharia com o benefício?”, questiona. Sueidi aponta outro impasse. “As empresas preferem contratar pessoas com níveis de deficiência menores, principalmente se no estabelecimento não houver estrutura física para PCDs”, lamenta.


O funcionário público Roger Alvarenga, 32, tem paralisia cerebral. Ele trabalhou durante oito anos em uma companhia de serviços aéreos e diz que, na época, não havia estrutura física na empresa para receber um funcionário com deficiência. Devido à falta de acessibilidade, não conseguia achar uma função que pudesse ser exercida por ele sem dificuldades. Desmotivado, ele preferiu pedir demissão da empresa.


Roger também enfrentou dificuldades para se qualificar. “Meu primeiro curso foi Turismo e a Universidade não oferecia acessibilidade. Por isso, a coordenação planejou instalar um elevador no local, contanto que houvesse aumento da mensalidade. Ouvi várias piadinhas sugerindo que a culpa do reajuste na mensalidade seria minha”, relembra.

“Sofri preconceitos e cheguei a ser questionado pela minha ex-chefe se eu tinha noção de que minha remuneração era maior do que o nível de serviço que eu prestava” (Roger Alvarenga)

Atualmente, Roger é funcionário do Ministério Público e está terminando o curso de direito.  Ele explica que os preconceitos que enfrentou durante a vida foram determinantes para a escolha da segunda graduação, e que pretende aplicar os conhecimentos em um setor que defenda os direitos das pessoas com deficiência. “Contratar um deficiente é benéfico para a empresa não só pela lei, mas é preciso entender que, se bem alocado e com as devidas condições, a PCD é útil para o estabelecimento, assim como qualquer outro funcionário”, reforça.