85,5% dos estabelecimentos produtivos do campo, mesmo ocupando 30,5% das terras agriculturáveis. Dados: Incra Foto: Ascom/MDA |
Pelo menos 90 mil famílias estão acampadas a espera de uma propriedade rural, segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Dados do IBGE consideram que a família brasileira é composta em média por quatro pessoas. Em base a esses números, 360 mil pessoas vivem sem condições de habitação e acesso a terra para produzir.
A concentração de terra é um problema que tem sua origem na ocupação na época da coroa portuguesa no século XVI. O latifúndio, uma herança das sesmarias, é hoje responsável pela falta terra para milhares de famílias. Nesse contexto, há duas forças em conflito no campo. A primeira é representada pelos movimentos de campesinos que lutam pela democratização da terra e trabalham com agricultura familiar. A segunda é representada pelos latifundiários do agronegócio focado na monocultura.
Pequenas Propriedades e agricultura familiar
Na agricultura familiar, o Brasil conta com 968.887 famílias assentadas que plantam e colhem em terras demarcadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Essas pequenas propriedades foram entregues à população sem condições econômicas para adquirir e manter um imóvel rural desde 1990. Os dados disponibilizados pelo Instituto apontam que no total, o país conta com 85,8 milhões de hectares destinados à reforma agrária e um total 9.256 assentamentos criados.
Um levantamento feito pelo Incra e pela FAO, órgão das Nações Unidas responsável pela agricultura e alimentação, indica que as pequenas propriedades representam 85,5% dos estabelecimentos produtivos do campo, mesmo ocupando 30,5% das terras agriculturáveis. Segundo a Organização das Nações Unidas, 70% dos produtos da base alimentar na mesa do brasileiro são produzidos pelas lavouras da agricultura familiar.
Reforçando o dado sobre a desigualdade na distribuição da terra, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), analisa que, 62,4% da área do total das terras cultivadas no país são improdutivas. O Incra contabiliza 40% das terras brasileiras como improdutiva.
Na videoteca virtual Gregório Bezerra organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em parceria com o projeto Armazém Memória, uma série de 20 vídeos apresentam a realidade conflituosa entre Agroecologia e Monocultura. O ambiente disponibilizar filmes e vídeos sobre a questão agrária brasileira, visando qualificar no conjunto da sociedade o debate sobre a reforma agrária no Brasil. Abaixo se encontra o documentário “Agricultura Tamanho Família”, o primeiro vídeo da série.
MST: da resistência à reforma agrária
Em 1536 Dom João III separou o território nacional em capitanias hereditárias. Em 2010, as terras improdutivas representavam 40% das grandes propriedades rurais brasileiras, segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Redemocratizar estas terras é a principal bandeira empunhada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra desde a sua criação em 1984.
Luta pela terra
O líder nacional do MST, Alexandre Conceição, trabalha em um escritório localizado na Asa Sul da capital do país, decorado por quadros que remetem às figuras de lutas sociais, como o revolucionário Che Guevara. Logo na entrada é possível identificar o coordenador nacional do MST. Com seu boné vermelho estampado com o símbolo do MST, ele caminha de uma sala a outra em conversa com os demais funcionários que se encontram na sede nacional do Movimento.
Ao explicar a origem das lutas pela terra no Brasil, o militante, ressalta que o movimento foi construído pela vida comunitária dos povos campesinos e o desejo de justiça social. “A solidariedade é nossa base. Desde a ajuda de um acampado com o outro, de uma família assentada com outra família assentada, de uma criança com a outra, que começam a aprender a dividir o brinquedo. Assim se criou essa teia, esse tecido, que formou o Movimento”.
Redemocratização do país e democratização da terra
“A luta espontânea dos acampados começava a explodir por todo o Brasil. Eles desejavam a redemocratização do país e a democratização da terra. O Brasil saia de uma ditadura militar, com muito massacre aos trabalhadores rurais”, recorda Alexandre. “Ao superar, nos anos 80 se funda o MST e no processo de redemocratização, funda-se o Partido dos Trabalhadores (PT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), as várias centrais sindicais”.
Em um contexto de Ditadura Militar, onde ocorreu à abertura da economia para o capital internacional que excluía a pequena agricultura, camponeses decidiram se recusar a participar do modelo hegemônico do agronegócio, do uso intensivo de agrotóxicos, da produção de transgênicos e da monocultura. Segundo pesquisa da Comissão Pastoral da Terra, nos 20 anos do regime militar foram assassinados 840trabalhadores rurais, ou 42 por ano.
Latifúndio e exportação
O Brasil em sua história de produção agrícola caracteriza-se como economia de monocultura para exportação. Cana de açúcar, café, soja, trigo, eucalipto. Produtos que cruzaram a história do país desde sua ocupação até o ano presente, todos plantados e colhidos em grande escala e com destino que está longe de ser a mesa do povo brasileiro. “Entendemos que o latifúndio improdutivo e a monocultura como elementos fundamentais da criminalização e injustiça social. Essas são as origens da desigualdade social que atinge o Brasil até hoje, iniciadas no ano de 1850 com a Lei de Terras, que legitimou a concentração fundiária”, denuncia Alexandre.
Contrariando a lógica do agronegócio, a política de desenvolvimento assumida pelo MST é do trabalho familiar e da produção em pequena escala. “Nos não queremos a reforma agrária, nem a terra, nem a natureza para fazer negócio, queremos para produzir vida. A terra tem esse poder de concentrar poder e renda” afirma.
De forma convicta o responsável nacional pelo MST lembra que o projeto de economia deseja o movimento de campesinos é ao contrário do pretendido pelos grandes latifúndios. “Nos acampamentos nos tentamos implementar um modelo de vida que seja implementado pelo respeito do ser humano para com o ser humano, ao meio ambiente, a natureza. É a partir disso que você constrói um processo de produção agroecológica. É pela agroecologia que acreditamos combater a produção agrícola capitalista no Brasil, que é uma produção voltada apenas ao acumulo”.
Ao caracterizar o trabalho do MST junto aos pequenos agricultores, Alexandre insiste sobre a importância desses na agricultura sustentável. “Cuidar do alimento é cuidar do ser humano”, ressalta ao fazer analogia a partir do cuidado.
Pará: violência e infrações trabalhistas marcam vida no campo
O estado do Pará aparece repetidamente como primeiro lugar em violência no campo. Em 2014 foram nove mortes e 95 investigações de trabalho escravo em andamento.
O massacre ocorrido em Eldorado dos Carajás, sudeste paraense, chacina onde 21 sem-terra foram mortos pela Polícia Militar e 69 ficaram feridos, é símbolo de violência do poder público ao campesinato. Prestes há completar 20 anos em 17 de abril de 2016, o acontecido se perpetua também como caso de iniquidade e cooptação política e econômica do sistema judiciário. Dos 155 militares responsáveis pelas mortes, todos foram julgados, contudo, apenas dois foram condenados. Os políticos responsáveis pelo massacre, o governador Almir Gabriel, o secretário de Segurança Pública, Paulo Câmara, nunca foram processados.
Historicamente conhecido por crimes ligados a conflitos agrários, o Pará continua a apresentar o maior índice de violência no campo. Foram contabilizados no estado nove assassinados dos 36 camponeses mortos em 2014. Ainda, das 32 tentativas de assassinatos, 28 ocorreram no estado.
Uma voz dissidente em um contexto de violência
Mineiro de Turmalina, o advogado José Batista Afonso passou a trabalhar com a Comissão Pastoral da Terra no Pará após o massacre em 1996. Segundo ele, a violência no campo no Brasil é uma questão estrutural que marca a história agrária do país. O militante em direitos humanos lamenta que este seja um assunto beneficiário das monoculturas e latifúndios. “Infelizmente a questão agraria brasileira sempre foi tratada como um caso de polícia, como um caso de interferência do Estado, mas para sempre beneficiar aqueles que concentram a terra. Nunca para poder democratiza-la”, denuncia o advogado.
Aos 51 anos, casado e com uma filha, José Batista Afonso é um dos principais defensores de direitos humanos e meio ambientes na Amazônia. Em 2009 foi uma das personalidades escolhidas para receber a Medalha Chico Mendes de Resistência. Voz dissidente em um contexto de violência ao campesinato e da criminalização dos movimentos sociais que trabalham pela reforma agrária, José comenta em entrevista a realidade do Pará, os desafios pela democratização da terra, as políticas públicas e a violência do Estado junto aos trabalhadores.
O Pará é o estado que concentra os casos de assassinatos por conflito agrário no Brasil, segundo o mais recente levantamento da Comissão Pastoral da Terra. Em 2014, das 36 vítimas registradas no país, nove mortes ocorreram no Pará. Qual é o principal motivo desta violência?
Esse conflito é alimentado por quais forças?
Como iniciou os trabalhos pelo direito a terra no Pará? Quais são as forçar que os trabalhadores hoje?
José Batista Afonso: Foi no Pará que se tiveram as primeiras denúncias de trabalho escravo na década de 70, feita pelo bispo Dom Pedro Casaldaliga. Este problema continua ainda sendo um problema grave no estado. Se pegarmos todos os relatos de trabalhos escravos no Brasil, o Pará continua sendo o Estado com maior quantidade de casos. Muitos trabalhadores conseguem fugir dos locais onde são escravizados, chegam até um escritório da Comissão Pastoral da Terra onde ele é atendido, tomado seu depoimento, encaminhado ao Ministério do Trabalho. Nos últimos anos tem se diminuído muito os casos de trabalho escravo, em parte se deve a ação de repressão via judicia.
Como acontece o trabalho escravo? O que sustenta essa prática de exploração?
José Batista Afonso: O trabalho escravo é realizado em um ciclo. Primeiro começa com o proprietário, um grileiro ou madeireiro que se apropria de uma área de terra e ali pretende desenvolver algum tipo de atividade. Para fazer isso eles acabam criando uma figura conhecida como gato. Ele é o intermediário que os patrões utilizam para fazer a contratação da mão de obra. Este gato sai e vai para as periferias das cidades, vai para os estados mais próximos daquela região aonde se precisa do trabalho e faz a contratação dos trabalhadores. Esta contratação é com base em uma promessa enganosa. Chega com o trabalhador em regiões pobres, faz uma promessa de que ele vai receber um bom dinheiro, que vai ter um bom salário. Deixa um adiantamento para ele fazer alguma compra pra deixar para família. Com isso ele consegue convencer um grande número de trabalhadores a se deslocar para área em que se precisa da mão de obra. Ao chegar ao local nada do que se prometeu acaba se cumprindo. Geralmente os trabalhadores são levados para regiões que eles não conhecem, tem dificuldade para sair.
José Batista Afonso: O trabalho escravo é realizado em um ciclo. Primeiro começa com o proprietário, um grileiro ou madeireiro que se apropria de uma área de terra e ali pretende desenvolver algum tipo de atividade. Para fazer isso eles acabam criando uma figura conhecida como gato. Ele é o intermediário que os patrões utilizam para fazer a contratação da mão de obra. Este gato sai e vai para as periferias das cidades, vai para os estados mais próximos daquela região aonde se precisa do trabalho e faz a contratação dos trabalhadores. Esta contratação é com base em uma promessa enganosa. Chega com o trabalhador em regiões pobres, faz uma promessa de que ele vai receber um bom dinheiro, que vai ter um bom salário. Deixa um adiantamento para ele fazer alguma compra pra deixar para família. Com isso ele consegue convencer um grande número de trabalhadores a se deslocar para área em que se precisa da mão de obra. Ao chegar ao local nada do que se prometeu acaba se cumprindo. Geralmente os trabalhadores são levados para regiões que eles não conhecem, tem dificuldade para sair.
Como acontece o controle desses trabalhadores?
José Batista Afonso: Na região, o que os trabalhadores precisam eles pegam na cantina da fazenda que o gato tem controle. Acabam contraindo uma dívida que acaba sendo maior do que o salário que ele ganha. Muitas vezes o trabalhador é impedido de sair até que acabe o serviço e até que quite a dívida. Contudo, esta é uma dívida que acaba muitas vezes não sendo quitada nunca. Esta é uma estratégia para sempre manter o trabalhador preso. O que tem se buscado é quebrar esta cadeia do crime, ou seja, acabar com a figura do gato e também com a figura do empregador que se utiliza deste tipo de mão de obra.
Qual o contexto do trabalho escravo no nosso país? A bancada ruralista contribui para que essas violações continuem?
A Constituição de 1988 trouxe algum avanço?
José Batista Afonso: Após a Constituição de 88 os movimentos sociais, percebendo que não foi possível avançar, buscaram a se organizar mais, principalmente a partir da estruturação do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o MST. Assim, ao longo dos anos, tentaram fazer uma pressão na busca de forçar pela via da pressão a mudança. Isso acabou tendo efeito pontual, no sentido que foram desapropriados muitos imóveis e criados projetos de assentamento. No entanto, essas são políticas paliativas. Não existe uma política de enfrentamento da questão da concentração da terra e de proposta de reforma agrária. O Massacre de Eldorado dos Carajás é um dos episódios mais marcantes da luta brasileira pela terra e também da violência praticada pela Polícia Militar aos movimentos sociais. Essa violência do estado sobre os camponeses que lutam ainda persiste?
Quando iniciou essa violência? Ela continua?
José Batista Afonso: A violência contra os camponeses não é uma questão recente. Se você pega 100 anos atrás, até a ocupação do Brasil pelos Portugueses foi violenta. Também podemos lembrar o movimento de canudos que aconteceu no século trazado. Foi uma iniciativa dos pobres que eram escravizados pelos coronéis nordestinos. Se juntaram com Antônio Conselheiro, tentaram se organizar em torno de uma comunidade em uma terra que ninguém queria. Na medida em que isso passou a ser uma referencia de acesso a terra para os agricultores, passou a ser duramente combatido e a experiência foi totalmente destruída numa ação articulada entre os coronéis do nordeste e o Exército brasileiro. Infelizmente a questão agraria brasileira sempre foi tratada como um caso de polícia, como um caso de interferência do estado, mas para sempre beneficiar aqueles que concentram a terra. Nunca para poder democratiza-la.
Essa luta da Reforma Agrária não estava na origem do Partido dos Trabalhadores? O que levou este a essa postura diante o tema?
José Batista Afonso: Hoje quem controla o poder econômico, controla também o poder político. O poder político no Brasil é refém do poder econômico. Sem dúvida nenhuma o setor ruralista tem o poder econômico muito forte, não só por que concentram a maioria das terras no Brasil, mas por que monopolizam a produção com seus monocultivos, os minérios. Em função do grande poder econômico que tem esses setores eles acabam sequestrando o poder político, sempre fazendo que ela esteja a serviço deste setor. A bancada ruralista é uma expressão deste poder que tem os setor. É uma bancada que mais cresce e que mais se manteve coesa nas últimas décadas. Frente a isso, o governo não tem tido força política e quando teve não assumiu ousadia suficiente para poder enfrentar estes setores para propor ações mais progressistas, que possam estar voltadas aos interesses das comunidades mais pobres. Exemplo disso é a questão da reforma agrária, da demarcação de terras indígenas, da regulamentação de terras remanescentes de quilombos, da reforma urbana, de ampliar as reservas ambientais. Tudo isso que deveria ser prioridade para qualquer governo popular, infelizmente não é por que o governo acaba ficando refém dos interesses desses setores que comandam a questão econômica do país.
Coordenador do MST: Dilma traiu movimento
Ao apontar a atual política como neoliberal, líder do MST critica governo e o descaso com as demarcações de terras.
O coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Alexandre Conceição, criticou, em Brasília, a política econômica da presidenta Dilma Rousseff. “Infelizmente estamos nos sentindo traídos. Ou ela [Dilma] recupera o seu programa original ou manteremos nossa luta cada vez mais forte em defesa do povo e da reforma agrária popular”.
Alexandre Conceição disse que as estratégias adotadas pelo governo para recuperar a governança do país a partir das alianças partidárias não são as corretas. Para ele, o Partido dos Trabalhadores aposta em projetos apresentados pela oposição liderada por Aécio Neves durante a campanha eleitoral em outubro do ano passado. “Quando fomos defender a presidenta Dilma, foi por um programa neodesenvolvimentista, que trazia o desenvolvimento do país a partir da distribuição de renda e de riqueza”.
Demarcação
O MST considera que a demarcação de terras foi paralisada no Governo Dilma. “O que estamos vivendo hoje é um programa neoliberal, de concentração de riqueza, de terra e de renda. Portanto, nós do MST somos contra a essa política exercida pelo governo hoje”. A crítica feita por ele se referem também às nomeações e concessões de ministérios, como o Ministério da Agricultura e da Fazenda.
Contudo, mesmo decepcionado pela conjuntura que desfavorece a classe trabalhadora, Alexandre sustenta que a militância do MST é contra o impeachment. “Estamos sendo contra a todas essas políticas da presidenta, mas não aceitaremos intolerância política, não aceitaremos golpe, não aceitaremos calados a retomada da ditadura militar”, enfatiza.
Reforma Política
Alexandre Conceição acredita que o país possa reorganizar sua política a partir de um plebiscito popular, que promoveria um grande debate nacional. “A reforma política é a primeira e mais importante reforma que o país precisa”. Junto a isso, o coordenador aposta no projeto que proíbe o financiamento privado de campanhas eleitorais.
“O trabalhador brasileiro, aquele da mão calejada que tem o suor no trabalho do dia a dia, não tem recursos para financiar deputados. As grandes empresas investem nisso, mas qualquer real posto em um candidato ela tirará três ou quatro mais. Ela [a empresa] não tira do Estado brasileiro, mas do povo deste país”.