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Os Invisíveis

Legenda
Foto: Íris Cruz 

Brasília é conhecida por algumas características singulares. Centro do poder político, capital federal, plano piloto. Cidade que vive o dia a dia em blocos e quadras, setores e vias, em uma monótona rotina. 21 de abril marca o aniversário da capital que, por mais visada que pareça, ainda tem muitos rostos invisíveis. Em meio a milhões de habitantes e com a maior renda per capita do país, parte da população vive um drama na cidade: O abandono. 

Atualmente, segundo a Secretaria de Desenvolvimento Humano e Social, duas mil e quinhentas pessoas vivem nas ruas por diferentes significados e motivos. Brigas familiares, drogas, problemas com bebidas e sonhos interrompidos são alguns dos principais motivos para alguém transformar a rua em moradia.



A psicóloga Fabíola Ferreira comentou que, apesar desses exemplos, não existem fatores específicos para que alguém vá morar na rua, mas sim, de um fenômeno multifatorial. “Alguns estudos que fiz sobre essa realidade, sobretudo com jovens nas ruas, são os que vêm de famílias desestruturadas, expostos muitas vezes pela violência parental, falta de perspectiva de vida e por se acharem incapazes de conquistar um futuro diferente do que eles já vivem”, explicou a especialista. 

A definição de Fabíola se encaixa em muitas das histórias que conseguimos escutar com alguns moradores de rua. É o caso de Magali Silva, de 56 anos. Ela veio para Brasília em busca de melhorar a qualidade de vida e trabalhar na capital federal. Sobre a história de Magali, a resposta foi simples. “Se eu te contar, não vai adiantar nada, o que eu faço é pedir uma ajuda, se eu precisar de alguma coisa eu te falo”.

Magali foi morar na rua depois de tentar resgatar o filho, que atualmente está preso por tráfico de drogas. Ela contou um pouco dessa relação com o rapaz e mostrou que não foi nada fácil. “Eu já cansei de tentar ajudar ele, minha família mesmo está na rua. A gente fica junto, dorme, se ajuda. Prefiro ficar com eles”, completou. Para arranjar dinheiro, a moradora de rua guarda carros no Setor Bancário Sul e até vende drogas para conseguir algum dinheiro para sobreviver. “Nunca pus um cigarro na boca, só uma pinga de vez em quando, mas eu vivo disso. Preciso disso para poder sobreviver.”.


Uma das colegas de Magali também nos contou um pouco sobre ela. Rafaela Souza, de 21 anos, veio do Ceará para Brasília em busca de uma vida melhor. Está na cidade há um mês e já conseguiu realizar um sonho, fazer cirurgia para se tornar travesti. “Consegui virar travesti, graças a Deus e estou adorando Brasília, não tem lugar melhor para viver. Não conheço muita coisa ainda”.


Sobre a rua, Rafaela contou que, apesar da situação, consegue enxergar felicidade e união, coisas que, segundo ela, nunca encontrou ou sentiu antes na cidade natal. Atualmente ela divide espaço com conhecidos na rua, e já fez muitas coisas para tentar sobreviver. “Eu já fiz e tudo um pouco, já me prostitui, já dancei em boates, mas vi que aquilo não era o melhor pra mim e saí. As pessoas daqui acham que a gente é lixo, por isso prefiro morar na rua, que me tratam bem independente e tudo”, concluiu.


Moradores de rua tentam tirar o sustento guardando carros, como Magali. Alguns deles, em vez de comprar uma comida, preferem gastar o dinheiro com drogas e bebidas alcoólicas. Fabíola Ferreira explicou que, do ponto de vista da psicologia, dependentes químicos preferem consumir esses produtos citados a um prato de comida, para amenizar a dor do cotidiano. “Sem dúvida, esse processo se dá pela necessidade da fuga de tudo o que é avesso ao seu redor, pois uma vez “anestesiado” com os efeitos das drogas e do álcool, ela se desconecta do mundo, mesmo num pequeno espaço de tempo”. 


Um personagem muito interessante que a reportagem conheceu foi Leoberto Pereira. Ele tinha uma vida comum. Tinha família, filhos, fez faculdade e trabalhou como eletricista. Entretanto, a droga mudou o caminho e definiu o futuro de Leoberto. O vício em cocaína acabou provocando a perda de tudo o que tinha. Leoberto conseguiu até a morar nos Estados Unidos por um tempo; porém, ao voltar para rever a família em Brasília, foi preso por tráfico de drogas. Atualmente ele vive na rua, não tem mais contato com a esposa e filhos, mas ainda conversa com os pais. Apesar disso, a relação com a mãe quando visita a casa é bastante conturbada. “Eu vou em casa de vez em quando, pra tomar um banho, mas acontece que eu sou muito julgado. Por isso que eu prefiro a rua, nela eu tenho o que preciso, não sou julgado por ninguém”.


Leoberto ainda não conseguiu largar o vício da cocaína. No dia da entrevista, ele nos contou que havia usado droga na noite anterior, mas enxergava que aquilo estava o destruindo e foi em busca de assistência para dependentes químicos no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). “Eu tento me livrar dela, mas até hoje não consegui arranjar algum auxílio para diminuir o consumo. Eu me sinto destituído no dia seguinte, que bate umas “ressaca”, não gosto nem de ver porque sei que vai me fazer mal”, concluiu .


Muitos vivem o dilema das drogas, mas encontramos um exemplo de superação com Fabiana Pereira da Silva, de 43 anos. Ela tem familiares ao redor do Plano Piloto, mas ainda prefere morar na rua. Fabiana vende uma revista cultural para tirar o sustento do dia a dia. Ela mora com um companheiro que dá suporte afetivo para ela. Os filhos e netos do casal moram hoje na casa dos parentes. “Hoje eu sou muito contente na rua, apesar de sentir muita saudade dos meus filhos e netos, é melhor pra eles”.


Com relação à droga, Fabiana teve uma relação próxima com o crack. Depois dos filhos e do trabalho, começou a ter maior consciência sobre a degradação que o uso causou e a necessidade de maior responsabilidade. Fabiana infelizmente não interrompeu o uso totalmente, mas agora ela não quer voltar para a situação de antigamente. “Hoje eu não me sinto bem usando a droga, não gosto nem que falem esse nome perto de mim. Estou me esforçando bastante para que um dia eu consiga voltar a ficar perto dos meus filhos de novo”.


Apesar dessas histórias tristes, a maioria dos entrevistados seguem as rotinas com um sorriso no rosto. Independentemente dos problemas que enfrentam, eles levam com alegria. É o que nos contou o morador de rua e músico, Davi Silva, de 36 anos. Na rua desde os sete anos de idade, teve uma experiência triste antes de sair de casa: a morte da mãe. Depois disso, Davi foi parar na rua, mas com o passar do tempo a vida melhorou bastante. Na música, encontrou uma espécie de salvação para o sofrimento.


Na igreja aprendeu a tocar violão e a cantar e, com isso, começou a trabalhar com a música. “Hoje em dia eu agradeço muito as experiências que eu tive para poder tirar todo o sofrimento. Estou estudando música numa faculdade e estou com meus projetos”, disse o músico.


Um morador que frequenta o Centro POP desde a abertura é o senhor José Pereira da Silva, de 56 anos. Ele busca auxílio de alimentação e ainda realiza muitas atividades com o pessoal que frequenta a unidade na Asa Sul. José tem familiares no entorno, porém, também é mais um que vive na rua por opção. “É complicado viver na rua, mas a gente acaba se acostumando e com as pessoas certas, eu até prefiro dormir em qualquer canto da cidade”, disse José.


É comum que muitos casais se formem nas ruas. É o caso de Keli Souza e  Ricardo Souza, de 31 e 23 anos, respetivamente. Cada um buscou no outro auxílio para sair da situação de dependência química. Keli conta que o marido foi e é fundamental. “Se não fosse por ele, eu acho que eu estaria sofrendo muito, ou até morte. Me prostituí desde nova, tudo para usar o dinheiro para comprar crack, com esse minha opção, eu engravidei e tive quatro filhos, que moram com alguns familiares meus”, conta Keli.


Já Ricardo passou por uma situação parecida com a da mulher. Teve a experiência com as drogas e a vulnerabilidade da rua, assim que conheceu a esposa, se sentiu na obrigação de ampará-la. “Ela é tudo pra mim. A gente se conheceu na rua, a gente se uniu e se fortaleceu. Não uso mais droga e agora eu estou estudando, nunca pensei que fosse gostar tanto disso. Vamos todos os dias buscar mais conhecimento”, completou Ricardo.


Atualmente os dois trabalham vendendo revistas culturais, a mesma de Fabiana. Keli conta que tem vergonha de pedir dinheiro, ela prefere trabalhar. “Hoje em dia eu não preciso mais pedir dinheiro na rua, com o meu trabalho eu consigo me virar na vida. Estudando e trabalhando, tenho ficado cada vez mais longe das drogas” completa e vendedora.


Pessoas são atraídas por Brasília. Tanto pelo fato de ser a capital do país, quanto por ser um local muito bom para melhorar a qualidade de vida. Mais uma personagem da reportagem conta que veio para o Distrito Federal por esse motivo. Edelzuita de Jesus, de 57 anos, veio pra o Planalto Central em busca de uma vida melhor, mas, uma doença degenerativa complicou um pouco a vida dela.


Sem família na cidade, apenas amigos que faz dentro do acolhimento do Centro POP dão auxílio para ela. “Eu tenho muito a agradecer a todos que vivem me ajudando. Eu tenho família, mas não moro mais com ele já faz muito tempo. Esses dias vi minha filha pela Internet, junto da minha netinha, e tenho muita saudade delas”, conta Edelzuita. Ainda na esperança de um dia voltar para os braços da família, ela segue a vida do jeito que pode. E um dia, quem sabe, chegar a rever a filha. 

Aqui no Distrito Federal há centros de acolhimento para moradores de rua, conhecidos como Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP).  Neles os moradores conseguem tomar banho, lanchar, descansar com mais tranquilidade. A reportagem foi ao Centro da Asa Sul, e lá conversamos com o diretor e da Unidade Luan Carvalho, que nos contou um pouco mais.  “Aqui nós tentamos acolhê-los da melhor maneira possível. Fornecemos um lanche, deixamos banheiros à disposição para tomarem banho. Atividades também são feitas por aqui, para que haja uma descontração com os moradores de rua que passam por aqui”, conclui Luan.

Centralizado

Em meio às árvores da quadra 202 norte é possível enxergar um colchão com cobertor vermelho xadrez bem engomado. É a casa de Costinha, única referência que o homem diz ter sobre o nome. Durante o dia a dia corrido da quadra comercial, onde vários transeuntes cruzam as ruas a todo momento, o paraibano de 42 anos se esconde debaixo do pedaço de tecido encontrado em um lixo dos prédios residenciais. Ele conta que é melhor se esconder quando o fluxo de pessoas é grande.
Conduzido por duas vezes até abrigos da cidade, Costinha afirma que a decisão de deixar os locais aos quais foi destinado surgiu por causa do vício. O problema para ele é o álcool. E este é o mesmo motivo que o fez sair de casa. Ele conta que, aos 17 anos, deixou a cidade onde morava no agreste da Paraíba. No município de Cuité, as condições de vida eram difíceis e a mãe, já falecida, o mandou procurar trabalho na cidade grande.
"Me perdi", diz o morador de rua ao acrescentar que "está acostumado" com a vida que leva. "Quem está na rua entende a rua".
Questionado sobre a violência à qual está exposto, Costinha parou para pensar durante alguns segundos. A resposta parecia engasgada. Até que relevou: entre os maiores medos está o do "olhar torto" de quem passa por ali.
Veterana

Maria Antônia Fernandes da Silva tem 63 anos e está na rua há pelo menos 30. Com problemas dentários e com a saúde debilitada, dona Maria conta que uma das maiores dificuldades está na hora de comer. Além das dores, falta força na arcada dentária para a mastigação.
Sem a maior parte dos dentes, a pronúncia das palavras também se torna difícil, lenta. Mesmo assim, a senhora magra com cabelos finos e grisalhos não deixa o sorriso de lado. E adora piadas. Enquanto toma conta de carros nas comerciais da Asa Norte  para tentar ganhar dinheiro - mesmo lugar que costuma escolher para dormir - dona Maria conversa com todos que passam por ela. Puxa papo, comenta as roupas das mulheres e até elogia os homens. "Que pão! Você viu? Na minha época a gente chamava os homens bonitos de pão, minha filha", contou.
De acordo com ela, a maior saudade é das filhas. Maria Antônia contou que saiu da periferia de São Luís, no Maranhão, quando terminou o casamento com o pai das duas meninas. A ideia de vir até a capital federal estava ligada às melhores condições de emprego. Mas, ao chegar, percebeu uma realidade diferente da que escutava quando em terras maranhenses.
"Não encontrei trabalho e também não consegui mais voltar para casa. Não tenho contato com minha família desde os 40 anos", disse. Mesmo com todas as dificuldades, ao pedir para dona Maria descrever a vida em uma palavra, a escolha foi "esperança". "Temos que ter [esperança] para acreditar que vamos acordar amanhã, né?", indagou.
Essas pessoas têm diversos motivos para seguir em frente e conseguir uma vida mais tranquila, sem as adversidades da rua. Neste mês em que comemoramos mais um aniversário da cidade, o cenário brasiliense é marcado pela história de cidadãos como Leoberto, Edelzuita, Keli, Ricardo, Davi, Costinha, Maria Antonia, Magali, Rafaela e Fabiana, dentre outros.

Confira reportagem para o Jornal Esquina:




Por Felipe Alcides e Victor Fernandes 

Colaboração Iris Cruz e Patrícia Cagni