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"A gente vive com a esclerose"

Rara e sem cura, a doença atinge todos os anos 20 a cada 100 mil Brasileiros



“Eu brinco que ela é uma inquilina meio chata. Ela fica aqui, guardada em uma caixinha e às vezes resolve sair para dar um olá”, revela Vanessa Mota de Souza, a advogada que descobriu a doença em 2014. Ela, Bruna Silveira e Jaime dos Santos são apenas três dos mais de 150 mil brasileiros afetados pela Esclerose Múltipla (EM) todos os anos, segundo dados da Secretaria de Saúde. Na doença, as lesões que ocorrem nos nervos prejudicam a comunicação entre o cérebro e o corpo. Quem vive com a enfermidade sabe que não tem cura, mas que um diagnóstico rápido atrelado ao tratamento adequado pode ajudar.

Emergências de hospitais, cinco oftalmologistas e três neurologistas. Essa foi a quantidade de especialistas que Vanessa Mota, 40 anos, teve que passar para ser diagnosticada. Ela conta que os médicos não pesquisavam o que poderia estar acontecendo e falavam que o problema era emocional. “Procurei um médico porque estava com dificuldades de enxergar com o olho esquerdo. Foi quando começaram os sintomas da doença. Todos me falavam que o meu problema era emocional. Eu comecei a piorar e um dia acordei sem sentir meu corpo do pescoço para baixo. Eu estava desesperada. Foi nesse momento que um médico realmente se preocupou em fazer um diagnóstico adequado”, afirma. Desde quando teve conhecimento da Esclerose Múltipla, ela adaptou a vida e os dias para enfrentar os obstáculos trazidos pela doença.



Quem também teve a vida modificada logo cedo foi a publicitária Bruna Silveira, 30, moradora de Porto Alegre, que aos 14 anos começou a sentir os primeiros sintomas da doença, na época ainda pouco falada. “Eu sentia um formigamento forte na mão direita. Logo fui indicada a um neurologista. Fiz o tratamento e o surto passou.” Bruna conta que algum tempo depois os sinais da doença voltaram mais fortes e, ainda menina, em um dos surtos, perdeu os movimentos dos braços e das pernas e precisou usar cadeira de rodas por um tempo. “Na época a doença não era nada conhecida e poucos queriam saber a respeito. Eu era uma menina. Não fazia ideia que a Esclerose Múltipla existia. Quando a ficha caiu, foi complicado”, relata. 




DOENÇA

Considerada uma doença rara, no Brasil, são aproximadamente 25 doentes para cada 100 mil habitantes, a esclerose múltipla tem caráter autoimune. O sistema imunológico lesiona a bainha de mielina que protege os nervos, criando um processo inflamatório. A EM não tem cura, mas o tratamento certo feito com acompanhamento médico e alguns tipos de terapia tornam o processo mais fácil. A neurologista Yuna Ribeiro explica que a natureza e a gravidade da doença variam de um paciente para o outro e que os sintomas dependem do local da lesão. “O paciente pode sentir desde disfunções sexuais, dormências, dores e tremores até paralisia, nos casos mais extremos”. Ainda de acordo com Yuna, um diagnóstico precoce é essencial para a introdução do tratamento, muitas vezes específico para cada paciente: “Se o tratamento começa cedo, as chances do desenvolvimento de seqüelas é menor”.




No caso de Vanessa, a preocupação surgiu quando os efeitos foram aparecendo no corpo. A advogada começou a sentir perda de sensibilidade, tremores e perda de força. A doença não afetou só o físico, mas também o emocional, trazendo muitas dúvidas e inseguranças. “É preciso entender que a cada progressão da doença, ficam as sequelas. Não sou a mesma pessoa que eu era antes, nem fisicamente, nem emocionalmente. Ando mais devagar, minha coordenação motora é ruim”, assume.


“Costumo dizer que quem tem EM só pode marcar um compromisso por dia. Às vezes, a fadiga nos coloca para baixo”, relata Bruna. A publicitária precisou andar com o auxilio de bengala até 2012. Hoje, caminha com um pouco de dificuldade e evita carregar peso. Para ela, a principal dificuldade da doença é fazer com que os outros entendam que há dias ruins. “As pessoas precisam entender que não é preguiça ou corpo mole. A esclerose tem dias bons e dias de muitas dificuldades, quando não consigo me levantar da cama ou articular direito”.

TRATAMENTO

A EM envolve um tratamento delicado, de muita persistência e dedicação nos momentos de recaída. É preciso todos os dias fazer um checklist, vendo o que está certo e o que precisa ser melhorado. Quando algo aparece, a vida precisa se adaptar para tornar as dificuldades ainda menores. No Distrito Federal e entorno, cerca de 300 pessoas recorrem a rede pública para conseguirem tratamento. Esse é o caso de Vanessa, que desde quando descobriu a esclerose, depende do governo para obter os medicamentos, que tem um custo muito elevado. Para a advogada, o tratamento veio em forma de medicamentos tomados ora via oral, ora por injeções, pilates, fisioterapia e um grande apoio da família. 

A Secretaria de Saúde pede que quem recorre à rede pública para ter acesso aos medicamentos, tenha em mãos um encaminhamento clinico para a realização do tratamento. Aqui, a secretaria atende toda a demanda de pacientes que recebe, não existindo filas.  A distribuição de medicamentos ocorre nas Farmácias de Alto Custo do Governo, que ficam localizadas em Ceilândia ou na Estação de Metrô da 102 Sul.

Na rede pública esse tratamento é feito no Hospital de  Base do DF (HBDF), no Centro de Referência em Esclerose Múltipla, localizado no ambulatório. Médicos neurologistas, especialistas na doença, atendem todas as segundas-feiras, o dia todo. O paciente conta ainda com uma equipe multidisciplinar, composta por oftalmologista, psicólogo, urologista e fisioterapeuta. Além do Hospital de Base, o Hospital Universitário de Brasília (HUB) e o Sarah também oferecem tratamento para a doença.  

A psicóloga Keila Britto ressalta que enfrentar a doença e aceitá-la é fundamental no processo de descoberta e tratamento. “O paciente precisa se sentir acolhido pela família e pela equipe que o acompanha. Isso pode ser um fator motivacional, uma fonte de superação nos momentos difíceis”.

Para o historiador e morador de Porto Alegre Jaime dos Santos, 33, o tratamento exige controle, comprometimento e disciplina. Ele, que descobriu a esclerose múltipla há cinco anos, usa um total de sete medicamentos para controlar os sintomas da doença e recorre a fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e exercícios em casa para ajudar no bem-estar. “O apoio da família é muito importante e tem sido ainda mais para as questões que vão além da doença”, afirma.  

SUPERAÇÃO

Keila explica que o processo de superação não é fácil. É preciso trabalhar a tristeza e aprender a lidar com as dificuldades. “O que eu recomendo aos meus pacientes é que eles tratem a esclerose múltipla como uma realidade. É preciso se aceitar, cultivar laços com a família, criar novas metas e objetivos, acreditar em si mesmo e principalmente na habilidade de adaptação para superar o que for necessário”. A psicóloga completa que é essencial uma rotina de atividades adequadas ao perfil de cada paciente, para que os mesmos divirtam-se sempre que possível.

Bruna viu na doença a oportunidade de unir duas coisas que gostava muito: escrever e ajudar os outros. Ela criou o blog “Esclerose Múltipla e Eu”, onde conta um pouco sobre seus dias de convivência com a EM, faz guias de viagem e posts sobre diversos assuntos e recomenda outros blogs sobre a enfermidade. Desde 2009, o blog já teve mais de 22 mil visualizações, número que cresce cada vez mais. “Quando descobri a EM eu era só uma adolescente, estudante, sonhadora e esclerosada. Hoje, só deixei de ser adolescente”, encanta-se.


“Esclerose Múltipla e eu” ocupou os dias de Bruna e a surpreendeu com um amor. Foi através do blog que ela e Jaime, também conhecido como Jota, se conheceram. “Quando descobri a doença comecei a pesquisar mais sobre o assunto. Achei o blog da Bruna. Começamos a conversar e percebemos afinidades que iam além da doença”, conta Jota. Hoje, os dois são casados e esperam ansiosos a chegada de Francisco, o primeiro filho do casal.
  

Um fato curioso é que raramente mulheres grávidas com EM tem alguma atividade da doença durante a gestação. “Depois de 16 anos com a doença, o primeiro presente que meu filho me deu foi a experiência de não a sentir durante um período da minha vida. Desde as primeiras semanas, antes mesmo de descobrir que estava grávida, os sintomas tinham sumido”, alegra-se. Os cuidados da mulher grávida com esclerose múltipla são os mesmos de qualquer outra. Sobre a possibilidade de um bebê com pais portadores da doença desenvolver a EM, as estatísticas são pequenas. A neurologista explica que normalmente, quando um dos pais tem a esclerose, as chances são de apenas 6%. Como o caso de Bruna e Jota é especial, as chances são um pouco maiores, perto dos 12%, mas ainda assim, raras.

A experiência de um casal esclerosado querer ser pai tem sido tão legal pra Bruna e Jota que os dois criaram um canal no youtube onde contam, semana a semana, como tem sido viver tantas alegrias, mas também tantos questionamentos vindos dos outros.


Além de uma linda história de amor, o blog também trouxe para Bruna o tema de sua tese de doutorado. Ela acabou, em julho, o doutorado sobre educação, estudando blogs de pessoas em condição crônica da esclerose múltipla. “Só pude perceber a importância dessas vidas contadas em blogs a partir da minha própria experiência. Viver com a esclerose é difícil sim. Tem momentos que dá vontade jogar a toalha. Mas quem nunca teve esses momentos? A EM faz parte daquilo que sou hoje”.

Quem também viu na doença um momento de recomeçar foi Vanessa. A advogada saiu do emprego, encontrou um novo hobbie e começou a fazer o que mais gostava: cozinhar. Hoje, com a ajuda da filha, mantém uma pequena fábrica caseira de pães de queijo saudáveis. A moça é mais próxima da família e vive a vida com mais leveza, apesar das dificuldades. Bruna, Jota e Vanessa não driblam a doença. Eles vivem uma rotina normal, apesar da Esclerose Múltipla, permitindo-se momentos de tristeza, seguidos de grandes momentos de superação, tendo em mente que dias melhores virão.

Veja também a matéria "A gente vive com a esclerose" na edição do Jornal Esquina, com mais informações.






Por Amanda Ferreira