Postagem em destaque

Nova plataforma!

Prezadas leitoras, prezados leitores, estamos com uma nova plataforma de conteúdo, lançada em junho de 2017. As reportagens são produtos tr...

Exploração sobre quatro rodas: MPT investiga irregularidades trabalhistas na plataforma Uber





Motoristas que apostaram no aplicativo Uber como fonte de renda extra adquiriram dívidas
(Crédito: Victor Trivelato)

Esperar. Uma, duas, três horas em um espaço com, no máximo, sete metros quadrados sem saber se terá a sorte de trabalhar naquele dia. Passar quase 16 horas sentado no mesmo lugar sem poder fazer muito além de esperar. Tudo isso para tentar chegar perto da quantia que foi prometida a ele quando se filiou a um negócio que pareceria extremamente lucrativo. Afinal, “quanto mais você dirigir, mais você vai ganhar”, dizia o anúncio do site bem estruturado e convidativo. “Ilusão”, diz o motorista Oscar*, cansado de ter passado fins de semana rodando ininterruptamente pelas ruas e festas da capital do país. Tudo isso para tentar arrecadar pelo menos metade do que conseguia há um ano, quando começou a parceria com a plataforma Uber.
As frases “dirija quando quiser, ganhe dinheiro como autônomo, sem escritório e sem patrão” também chamaram a atenção de Raquel*. Ela revelou que foi atraída pela companhia desde o primeiro momento em que viu as propostas no site. “Eu fui fisgada pela propaganda que prometia salários de até R$ 6 mil por mês”, lembrou. “Além disso, parecia um bom negócio ser monitorada [via GPS], não ter que lidar com dinheiro, nem ficar muito tempo parada com o veículo enquanto o passageiro entra e sai”, contou. Então, Raquel se cadastrou na plataforma e vendeu o carro que tinha para comprar um que alcançasse o padrão requerido, afinal, queria se encaixar nas exigências para não perder nenhum benefício. Mas depois de aproximadamente 20 dias, assim que concluiu o processo e recebeu a aprovação, descobriu que tinha sido realocada para uma categoria com taxa de ganho mais baixa e com menores lucros.


Assim sendo, Raquel foi remanejada para um segmento menor, com lucros menos promissores. “Agora tenho que quitar a dívida que tinha feito quando pensei que estava investindo num novo negócio”, riu com ironia. Com menos dinheiro que o valor esperado, além de enfrentar a jornada de oito horas diárias em um escritório, Raquel precisa dirigir das 18h às 0h todos os dias da semana e integralmente aos sábados e domingos. No momento em que conversou com nossa reportagem, já rodava havia 12 horas, com pausa de uma a duas para descanso dentro do carro. “Não estou aqui para me divertir, faço isso porque preciso do dinheiro”, lamentou.
ENDIVIDADOS


Desempregado, Raimundo* também resolveu “investir no novo negócio” para não deixar de sustentar a família. “Pedi para o meu filho, que é entendido das coisas, fazer meu cadastro e aí entrei", explicou. Mas ele não contava com tantas despesas. “Tive que comprar um carro bom e novo. Comprei um smartphone e ainda tive que mudar meu pacote de internet para um bem mais caro”, disse em tom de indignação. “Agora preciso trabalhar para pagar todas as dívidas. Não vi muito lucro nisso”, afirmou.
Apesar de não ter que quitar dívidas, Oscar, que também está sem emprego, precisou aumentar as horas de trabalho para manter o padrão que alcançou há dois anos, quando se filiou à companhia. “Quando eu entrei era uma época muito boa.  Dava muito dinheiro, tinha poucos motoristas e muitos clientes. Já cheguei a tirar R$ 6 mil trabalhando meio período”, relembrou.  
Oscar relatou que no início deste ano, muitos trabalhadores aderiram à plataforma, e a companhia reduziu a taxa de corrida. Ação que, na visão dele, prejudicou quem já prestava o serviço. “Eles [companhia] aumentam o número de motoristas, diminuem o preço e acabam com os incentivos”, lamentou. “Foi tudo ilusório”, afirmou. Mesmo sem um emprego fixo, desistiu e cancelou a participação. “Vejo amigos que só vivem disso, tendo que trabalhar desde a manhã até a tarde da noite para ganhar o que a gente fazia em uma manhã”, desabafou. As longas horas de trabalho são um relato quase unânime entre os “parceiros”,  salientou Raquel.
ESCRAVIDÃO MODERNA?


Para o advogado do trabalho Klaus de Melo, a necessidade de ganhos, impulsionada pela atual conjuntura econômica do país, é um dos motivos que despertam o interesse pela proposta apresentada pela Uber. “Sob o império da necessidade, a pessoa pode se submeter até mesmo a um tipo de trabalho com condições análogas às da escravidão”, ponderou. No Distrito Federal, o Ministério Público do Trabalho (MPT) instaurou um inquérito para analisar possíveis irregularidades trabalhistas e de terceirização ilícita entre a Uber e os motoristas. A sede brasileira da empresa precisava apresentar a defesa e responder os questionamentos do órgão até a segunda semana de outubro. Entramos em contato com a assessoria de imprensa do MPT, mas ainda não tivemos resposta quanto aos desdobramentos da investigação.
Acompanhe a entrevista com o advogado Klaus de Melo:



Veja também:

De acordo com o procurador e autor do inquérito, José Pedro dos Reis, “a uma primeira vista, podemos identificar que essa relação de trabalho dos motoristas com as donas de aplicativos, em especial a Uber, poderá ser caracterizada como trabalho escravo”, afirmou. Conforme o Artigo 149 do Código Penal, "reduzir alguém à condição análoga à de escravo é sujeitar o trabalhador a jornadas exaustivas, a condições degradantes de trabalho e/ou restringir o direito de ir e vir do cidadão em razão de dívida contraída como empregador".
Acompanhe a entrevista com o procurador do trabalho José Pedro dos Reis:


Usando como base essa definição, o procurador do MPT, José dos Reis, afirmou que os motoristas da plataforma estão sob condições degradantes de trabalho por não terem alimentação, condições sanitárias, água potável e estarem sujeitos a intempéries, além de submetidos a jornadas exaustivas de trabalho. “Muitos trabalham de 16 a 18 horas sem nenhum controle”, justificou. Já o advogado Klaus de Melo acredita que a questão precisa ser melhor discutida já que, segundo ele, só se pode classificar trabalho escravo quando há comprovação de vínculo empregatício. E, de acordo com o jurista, essa classificação só pode ser feita na presença desses três elementos em conjunto: a subordinação jurídica, o trabalho não eventual e a remuneração pelo trabalho. “Não existe subordinação jurídica. Ele [o motorista] é dono do tempo dele; ele vai dizer o que vai ganhar. E, até mesmo pode sair dessa atividade e criar outro aplicativo de atendimento, por exemplo, como já está acontecendo", explicou.

Para Reis, existem outras formas de classificar a subordinação jurídica. “A flexibilidade da jornada de trabalho e da assiduidade não é critério excludente da existência da subordinação”, afirmou em denúncia feita por ele ao MPT. Isso porque, segundo ele, “os cargos de gestão e aqueles executados fora do estabelecimento do empregador, ainda que não sujeitos ao regime disciplinar de jornada, também não inviabilizam a existência do vínculo empregatício”, argumentou usando como base o Art. 62 da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas).
Por enquanto, o MPT investiga o caso na capital, mas pode ir para a esfera federal.  Se o órgão entender que houve irregularidades, a plataforma precisa ajustar as atividades para não ser acionada na Justiça. “Se entendermos que há práticas de exploração, nós propomos um termo de compromisso para resolver essa questão extrajudicialmente. Se a empresa não cumprir as normas, o Ministério pode entrar com uma ação civil pública”, explicou o procurador José dos Reis.

"SEJA SEU PRÓPRIO CHEFE”


Para Melo, o sistema oferecido pela empresa se assemelha mais a uma sociedade do que a um vínculo empregatício. Segundo ele, se vistas dessa maneira, as imposições feitas pela companhia estariam dentro do previsto por lei. “A empresa empresta a confiança, a capacidade jurídica e de marketing e tudo que desenvolveu para que as pessoas confiassem no serviço, e o motorista entra com o restante [itens necessários para o trabalho]”, explicou. Na visão do advogado, os condutores são tratados até mesmo como sócios majoritários, já que têm a maior porcentagem dos lucros - 80% ou 75%, dependendo da categoria escolhida - e também autonomia para construir a jornada de trabalho. Segundo o procurador José dos Reis, o fato do motorista utilizar o próprio veículo e celular “não desconstitui juridicamente a possibilidade da existência do vínculo”.
Paulo*, um motorista que vê a empresa como um trabalho alternativo, contou que nunca esperou essa formalização. “Não tem contrato. Ela [Uber] coloca bem claro que não tem vínculo empregatício nenhum. Você tem que saber que você precisa de um carro que atende aos padrões, às exigências dela e que tem que oferecer um conforto pro cliente; um serviço diferenciado", explicou. Contudo, para o Procurador do MPT do Rio de Janeiro, Rodrigo Carelli, “ao ditar o tipo de carro, a forma de conduzir, o modo de se portar, o uniforme e a tarifa a ser cobrada", a empresa passa a ter "total controle dos trabalhadores”. “Eles são empregados, mas não reconhecidos como tal, desobrigando a empresa dos deveres como empregadora”, criticou.

Segundo o procurador José dos Reis, ao não cumprir esses deveres,  a Uber lesiona os trabalhadores, os usuários e o Estado, já que não há arrecadação de impostos nem oferta de direitos trabalhistas, como o FGTS. "O desconto dado ao consumidor e o lucro da dona do aplicativo sai do bolso do trabalhador e do nosso como contribuinte”, relatou. “Se afastado, tanto o trabalhador que não recolhe a previdência social, quanto a família dele ficam a cargo do Estado”, refletiu.

ESCRAVOS DAS ESTRELAS
Apesar das horas exaustivas, orientações específicas, e porcentagens cobradas por corrida, os motoristas entrevistados não entendem o serviço como um trabalho escravo. Por outro lado, sentem-se incomodados com o sistema punitivo e avaliativo. Para eles, o esquema de avaliação vigente dá ao passageiro uma liberdade que pode prejudicar o motorista. “A gente é escravo das estrelas”, categorizou Raquel com medo de que ao descobrir isso, os clientes se portem de modo ainda pior. Isso porque, tanto ela como os outros relatam que, por oferecer ao cliente o poder de avaliar o motorista, a Uber deu aos passageiros liberdade de se comportar "como bem entender” dentro do veículo. Conversas impróprias, assédio moral e físico, abuso de poder são só alguns dos relatos que acompanham os motoristas. “Você suporta tudo e ainda no final, eles te dão poucas estrelas. Às vezes por nada, só porque você não tinha a balinha ou a água importada que ele queira”, desabafou Raquel.

Mesmo satisfeito com os ganhos alcançados por usar o sistema Uber, Paulo se mostrou apreensivo quanto ao tema avaliação. “O problema, é que muitas vezes os passageiros estão embriagados e nem sabem o que fazem quando nos avaliam”, contou. Segundo o acordo oferecido no site da empresa, o motorista está sujeito a uma avaliação contabilizada por estrelas. Sendo cinco o máximo alcançado. De acordo com o site, as avaliações feitas por passageiros têm a intenção de incentivar o motorista a oferecer o melhor serviço possível. Paulo explicou que quando as estrelas computam um valor menor que 4,5 o motorista já começa receber notificações da companhia. “Se você ficar com uma nota abaixo do esperado, a Uber começa a perguntar se você vai melhorar o atendimento”, disse. Mas, de acordo com Raquel, as notificações são raras. “Eles simplesmente te cortam sem aviso nenhum. Aí, você acorda no outro dia para trabalhar e não pode mais abrir o aplicativo porque não faz mais parte da plataforma”, relatou Raquel.

“NÃO CONTRATAMOS”
Para o advogado do trabalho Klaus de Melo, se compreendida como sociedade, a Uber não seria “um patrão que dita ordens”, mas um sócio que exige um mínimo de qualidade da parceria  para que a empresa continue funcionando. Já o procurador do trabalho  José dos Reis afirma que o sistema punitivo da empresa seria mais uma evidência do vínculo empregatício. Pedro*, um motorista de 56 anos, explica que trabalha com a plataforma por falta de opção. “Nessa idade é difícil achar trabalho. Entrei por não ter muita escolha”, lamentou. No entanto, ele afirma que se sente como um funcionário desamparado. “A gente não tem apoio nenhum. Nenhum direito trabalhista. Quem tem direito é só o passageiro”, indignou-se.
A empresa alega que não é responsável por empregar os condutores. “Os motoristas que contratam a Uber para utilizar o aplicativo para o serviço de transporte individual privado de passageiros. Eles têm total flexibilidade e independência para fazer seus horários e prestar serviços quando, quando e como quiserem”, informou. A Uber comunicou também que os motoristas optam por trabalhar ou não, já que a plataforma não é exclusiva. Pedro discorda do posicionamento da plataforma. “Eu acho que eles me contrataram. Porque eu tenho que fazer tudo o que eles pedem e eles exigem muita coisa da gente. Eles falam que a gente que contrata eles, mas eu acho que só eles que tem vantagem”, opinou antes de pegar o próximo cliente. Em Brasília, a circulação de veículos que usam o aplicativo foi regulamentada em agosto deste ano.

*Os nomes usados na reportagem são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados.

Por Aline do Valle

Confira a matéria impressa aqui